ANDALUZIA,
QUANDO O NÔMADE CRIA RAÍZES
Diferentemente do exemplo brasileiro, o cigano na Espanha não aparece como um apêndice que dá reforço simbólico para a construção de uma identidade nacional centrada em outra figura; ali ele ocupou o centro do palco e foi tomado por ícone nacional. À semelhança do mulato e do malandro Zé Carioca no Brasil de um certo período, o cigano é reconhecido externamente como símbolo da identidade espanhola e, mais especificamente, andaluza. A Espanha aparece não raro como uma referência para caracterizar seja a proveniência dos ciganos, seja o cenário em que a ação se desenrola. Todo o romance de Merimée se passa na Andaluzia e Carmen, sua protagonista, constituirá, com a adaptação de Bizet para ópera [1875], a síntese do imaginário feminino espanhol. Esmeralda, de Victor Hugo, e as ciganas de Gil Vicente são também ciganas andaluzas em viagem. Em O guarani [1857], de José de Alencar, há uma alusão à procedência certa dos ciganos: “sobre uma cômoda, via-se uma dessas guitarras espanholas que os ciganos introduziram no Brasil quando expulsos de Portugal”. Os versos tardios de João Cabral de Melo Neto de Sevilha andando(1987-93) e Andando Sevilha(1987-9) fazem explícita referência ao universo cigano que se imiscui no andaluz.
Igualmente, o cenário da cigana no centro da roda, reconstruído por Raduan Nassar em Lavoura arcaica [1975], remete ao contexto espanhol, ao imaginar nos gestos da personagem as palmas e as castanholas próprias do flamenco. Ao que parece aquela “célula” que se identificou em diversos textos, em que há uma mulher cigana que dança e canta e, ao seu redor, um círculo de homens “enfeitiçado” por ela, é, em boa parte das vezes, uma alusão ao flamenco e, portanto, à Andaluzia. Mas em que consiste esse universo simbólico andaluz ligado à música e aos ciganos?
A relação com a música é um traço encontrado entre os ciganos também no Leste Europeu, onde, como já foi dito, incorporaram estilos musicais dos lugares em que passaram. O que hoje é conhecido como flamenco tem sua origem no cante jondo, um estilo musical que se formou na Andaluzia com a colaboração de elementos do canto litúrgico bizantino e da invasão árabe em 711 –e também possivelmente da música hebraica–, amalgamados pelos ciganos (Gibson, 1998: 182; Vaux de Foletier, 1970: 135). Asiguiriya (um dos três estilos decante jondo) constitui, segundo Miguel de Falla –primeiro estudioso do estilo–, a forma arquetípica do gênero, “o fio que nos une ao Oriente impenetrável” (apud Gibson, 1998: idem). Segundo Bernard Leblon (1990), embora usando elementos da cultura local, os ciganos parecem preferir instrumentos afins ao padrão instrumental da Índia e de outras terras do leste.
Mas foi o poeta espanhol Federico García Lorca, amigo de Falla, quem colaborou definitivamente para a associação do universo artístico do cigano à Andaluzia e ao flamenco, com a obraRomancero gitano. Considerado o livro “mais lido, mais recitado, mais analisado e mais célebre de toda a literatura espanhola” (Gibson, 1998: 214), o Romancero gitano, escrito entre 1924 e 1927, apresenta uma série de 18romances que resulta num “canto andaluz, no qual os ciganos servem de estribilho” (Lorca apud Gibson, 1998: 212). Por meio da alternância e da interação do cotidiano e de uma dimensão mítica, episódios como o falecimento de uma criança, o choro das ciganas, a luta entre ciganos, a eminente morte do cigano na casa do pai de sua amada, a possessão de uma cigana, a conquista amorosa, o desencanto e a solidão angustiada, o ritual na rua, o anúncio da concepção, a contraposição entre o cigano e a guarda civil, o oráculo e as superstições, etc., enfim, uma multiplicidade de elementos da cultura são tecidos, resultando numa visão bastante complexa do arcabouço cultural desses ciganos. Mas não cabe aqui alongar uma análise da obra; esta interessa na medida em que evidencia o esforço de Lorca, no início do século XX, de enaltecer essa cultura para tomá-la como referência à identidade cultural espanhola. Esta operação não foi, entretanto, trivial. Em seusromances, Lorca se apóia no imaginário ocidental para então deixar passear sua poesia mítica, que entrelaça mundos em um plano metafórico, sugerindo novas relações entre o elemento nacional e o cigano. Outras obras apontam para uma identidade entre a Espanha e os ciganos, mas na obra de Lorca tal associação se dá de maneira explícita e eminentemente política. Por esse motivo, proponho determo-nos em alguns trechos dos poemas de Lorca, buscando extrair deles o que o autor considera relevante para pensar a identidade espanhola.
Os ciganos aparecem na poesia de Lorca como personagens de um mundo mítico. É incerto se as referências do mundo sobrenatural (quando, por exemplo, lua e o vento são personificados) são parte da cosmologia dos ciganos ou recursos poéticos. Desta maneira, Lorca suspende o olhar sobre os ciganos para um nível extracotidiano, para um estado em que prevalece a imaginação. A singularidade do texto encontra-se na apresentação de fatos cotidianos –como a briga e o amor– imersos em elementos cósmicos. Por outro lado, sobressai como representação desses ciganos uma certa lei interna, que não diz respeito à sociedade espanhola. A honra é um valor primordial que aparece para avaliar e organizar as relações amorosas e de poder entre ciganos. Em La casada infiel, um cigano narra sua desilusão com a cigana que levara ao rio, pensando que era moça solteira, mas ao saber que tinha marido, é obrigado a mostrar sua honra de “cigano legítimo”:
Y que yo me la llevé al río / creyendo que era mozuela, / pero tenía marido. […] /
Yo me quité la corbata. / ella se quitó el vestido. / Yo el cinturón con revólver. /
Ella sus cuatro corpiños. / […] No quiero decir, por hombre, / las cosas que ella me dijo. /
La luz del entendimiento / me hace ser muy comedido. /
Sucia de besos y arena, yo me la llevé al río. / Con el aire se batían las espadas de los lirios. /
Me porté como quien soy. / Como un gitano legítimo. / La regalé un costurero /
grande de raso pajizo, / y no quise enamorarme / porque teniendo marido /
me dijo que era mozuela / cuando la llevaba al río (Lorca, [1924-7] 1998: 27-9, grifos meus).
Nesse poema a atmosfera onírica abriga uma série de descrições que caracterizam os ciganos. Os trechos grifados são particularmente enfáticos na construção de uma identidade masculina. O hombre, o gitano legítimo, se afirma por meio do vestuário e do acessório: a gravata e o revólver. No episódio, o cigano defende-se do perigo de amar uma cigana casada: homem que é, não pode por ela se apaixonar. Esta imagem é ainda mais forte nos poemas “Reyerta” (disputa), “Prendimiento de Antoñito el Camborio en el camino de Sevilla” e “Muerte de Antoñito el Camborio”, que descrevem brigas entre dois bandos de ciganos:
En la mitad del barranco / las navajas de Albacete, / bellas desangre contraria, /
relucen como los peces. […] / * / El juez, con guardia civil, por los olivares viene. /
Sangre resbalada gime / muda canción de serpiente. / Señores guardias civiles: /
aquí pasó lo de siempre. / Han muerto cuatro romanos / y cinco cartagineses.
(“Reyerta”)
Antonio Torres Heredia, / Hijo y nieto de Camborios, / Con una vara de mimbre /
Va a Sevilla a ver los toros. / […] Y a la mitad del camino, / bajo las ramas de un olmo, /
guardia civil caminera / lo llevó codo con codo […] Antonio, quién eres tú? /
Si te llamaras Camborio, / hubieras hecho una fuente / de sangre, con cinco chorros. /
Ni tú eres hijo de nadie, / ni legítimo Camborio. / ¡Se acabaron los gitanos /
que iban por el monte solos! / Están los viejos cuchillos / tiritando bajo el polvo.
(Prendimiento de Antoñito…)
Bañó con sangre enemiga / sucorbata carmesí, / pero erancuatro puñales y tuvo que sucumbir. […] ¿Quién te ha quitado la vida / Cerca del Guadalquivir? / Mis cuatro primos Heredias /
Hijos de Benamejí. / […] Y cuando los cuatro primos / llegan a Benamejí, /
voces de muerte cesaron / cerca del Guadalquivir
(“Muerte de Antoñito…”) (idem, grifos meus).
Mais uma vez as armas –agora a navalha, a faca e o punhal– marcam o universo masculino dos ciganos, junto ao “sangue inimigo”, ao “sangue contrário”. Ainda, a entrada em cena da justiça espanhola se segue de um distanciamento em relação à justiça dos ciganos. O juiz observa, de fora, o resultado de uma lei que opera em paralelo, confirmada pela dimensão cotidiana do evento (“aquí pasó lo de siempre”). Em Prendimiento… o autor mostra uma polícia arbitrária, que prende o cigano Antônio Torres Heredia “na metade do caminho”. O narrador, um cigano onipresente, acusa-o de não ter agido como um “legítimo Camborio”, isto é, de não ter matado o guarda civil que o prendeu, fazendo dele uma “fonte de sangue”. A voz que lamenta a perda da tradição dos ciganos (“¡Se acabaron los gitanos / que iban por el monte solos! / Están los viejos cuchillos / tiritando bajo el polvo”) reforça que o lugar da identidade masculina é a honra. A existência desta como definidora do indivíduo e do grupo, entretanto, não é novidade para boa parte do Ocidente: a honra defendida no duelo entre cavalheiros, disseminada por exemplo na Europa napoleônica, não é tão distinta das disputas travadas entre ciganos nos poemas de Lorca, sobretudo quando a motivação é uma mulher. Desse modo, creio que ao jogar luz a certos aspectos da moral e da vida dos ciganos, Lorca termina por conformar um imaginário masculino viril e honrado que serve de paradigma ao espanhol. Há uma definição nítida das funções masculinas e as femininas, e uma moral rígida que as regula.
No Romancero, as ciganas aparecem freqüentemente associadas à sedução. São, nesse sentido, versões da representação ocidental analisada anteriormente, mas que admitem uma leitura diversa quando recortadas sob a perspectiva local espanhola. Em La casada infiel, a cigana dissimula seu casamento e seduz o cigano, deixando-se levar ao rio. Outras duas personagens, a Monja gitana e Preciosa, são retratadas em fantasias sexuais:
Por los ojos de la monja / galopan dos caballistas. / Un rumor último y sordo /
le despega la camisa, / y al mirar nubes y montes / en las yertas lejanías, /
se quiebra su corazón / de azúcar y yerbaluisa.
Pero sigue con sus flores / mientras que de pie, en la brisa, /
la luz juega el ajedrez / alto de la celosía.
(La monja gitana)
Su luna de pergamino / Preciosa tocando viene […]
En los picos de la sierra / los carabineros duermen /
Guardando las blancas torres / donde viven los ingleses […].
Su luna de pergamino / Preciosa tocando viene /Al verla se ha levantado /
el viento que nunca duerme. / San Cristobalín desnudo, lleno de lenguas celestes, /
mira a la niña tocando / una dulce gaita ausente.
Niña, deja que levante / tu vestido para verte.
Abre en mis dedos antiguos / la rosa azul de tu vientre.
Preciosa tira el pandero / y corre sin detenerse.
El viento-hombrón la persigue / con una espada caliente.
¡Preciosa, corre, Preciosa, / que te coge el viento verde!
¡Preciosa, corre, Preciosa! / ¡Míralo por donde viene! […]
(Preciosa y el aire)
O universo feminino é radicalmente separado do masculino em todo o Romancero gitano. Como em representações de outras obras literárias, a mulher cigana é erotizada, mas nestes dois casos ela aparece em uma situação passiva na relação com o homem, e não como a mulher sedutora que manipula os homens ao seu redor. Além disso, em relação às representações analisadas, no livro de García Lorca, o narrador não é o ocidental enfeitiçado que descreve seu objeto de desejo. O ocidental –os policiais e os ingleses– está deslocado, fora da cena, deixando todo o foco para Preciosa e o “vento verde”.
Não há de ser coincidência, por outro lado, o uso do mesmo nome próprio da gitanilla de Cervantes. Lorca escolhe o nome Preciosa e a acompanha de um instrumento musical já conhecido, o pandeiro. O autor apropria-se da idéia da cigana-artista que seduz, mas altera substancialmente o sentido ao radicalizá-lo. Preciosa é decerto objeto de desejo, mas aqui não é o centro de uma roda de locais, e sim de um personagem cósmico, o vento que a persegue. O “vento verde” pode ser interpretado como um cigano genérico, no qual é a virilidade que dá o colorido. Se nos outros textos a sedução era um mecanismo de ocultação e se entrevia na descrição absorta das partes do corpo, aqui ela é crua e direta. Lá, um desejo passivo de espectador; aqui, um desejo em ação, que se atira agressivamente contra seu alvo. Todo oRomancero pode ser relido nesta chave que lança mão de elementos do imaginário ocidental sobre os ciganos para reordená-los, invertê-los, radicalizá-los. Com o enaltecimento da cultura cigana, o que Lorca promove é uma reviravolta nos valores que servem de base à identidade espanhola.
A esse respeito colabora o crítico literário Fernández de los Ríos (1986) com uma interpretação doRomancero gitano, mostrando como o título carrega em si a contradição entre cigano e sociedade espanhola: romanceroé uma categoria literária que se consolida no final do século XIV, em forma de cantares. A partir do século XVI, ele passa da expressão oral para a escrita e é absorvido do âmbito popular pela elite cultural; os grandes poetas espanhóis apropriam-se desse estilo e fundam uma tradição. A imagem do romancero é, portanto, a de um elemento fincado nas profundezas da cultura espanhola, com uma estabilidade enraizada há séculos. Em contraste com o fixo, aparece o gitano, personagem móvel por excelência, nômade, vagante. O cigano está em toda parte e não trava compromisso com o território. A oposição entre a significação do romancero e a do gitano fica explícita:
o espanhol versus o não-espanhol; o entranhado versus o errante; o enraizado versus o flutuante. Esse título teria, desta forma, uma ação de síntese do livro, antecipando a dualidade de opostos que está presente na série de poemas. Tal cadeia de antinomias, entretanto, serviu a Lorca para propor uma representação alternativa de seu país, ao ver no cigano a essência de sua cultura.
El libro [Romancero gitano] en conjunto, aunque se llame gitano, es poema de Andalucía; y lo llamo gitano porque el gitano es lo más elevado, lo más profundo, más aristocrático de mi país, lo más representativo de su modo y el que guarda el ascua, la sangre y el alfabeto de la verdad andaluza y universal (Lorca apud Gibson, 1998: 212).
É interessante contrapor este discurso do século XX à novela de Miguel de Cervantes, La gitanilla, publicada na Espanha, em 1613. Nesse romance curto, narra-se a história da cigana Preciosa, descrita como uma mulher que canta, acompanhada de um pandeiro, e dança, seduzindo os homens com sua sensualidade. Preciosa “diz a sorte” às pessoas, e tira moedas de ouro dos nobres da cidade, até que um deles, o rapaz Andrés, se apaixona por ela e decide abandonar sua vida para seguir a dos ciganos, aliás condição para se casar com ela.
[…] Una desta nación, gitana vieja, […] crió una muchacha en nombre de nieta suya, a quien puso [por] nombre Preciosa, y a quien enseñó todas sus gitanerías, y modos de embelecos, y trazas dehurtar. Salió la tal Preciosa la más única bailadora que se hallaba en todo el gitanismo, y la mas hermosa y discreta que pudiera hallarse […].Salió Preciosa rica de villancicos, de coplas, seguidillas y zarabandas, y de otros versos, especialmente de romances […]
[…] De entre el son del tamborín y castañetas y fuga del baile salió un rumor que encarecía la belleza y donaire de la gitanilla, y corrían todos los muchachos a verla, y los hombres a mirarla. Pero cuando la oyeron cantar, por ser la danza cantada, ¡allí fue ello! Allí si cobró aliento la fama de la gitanilla […]
Diferente do texto de Cervantes, em que se intui a identidade entre ciganos e a Espanha, mas, devido ao contexto histórico em que vivia, tal formulação é anulada (Preciosa, a menina dos olhos, no final “desvira” cigana e volta a ser nobre espanhola), a poesia de Lorca sustenta a ciganidade como traço metonímico espanhol. Essa intenção se explicita com os atributos de aristocracia e profundeza da cultura cigana para representar o nacional espanhol.Entretanto, cabe notar que esta éuma das identidades reivindicadas para representar a Espanha. Certamente, em outros movimentos e épocas outras regiões e culturas foram acionadas para representar o país todo. Por sinal, o intuito não é chegar a uma conclusão sobre a identidade espanhola, mas apresentar a existência de uma leitura interessada dos ciganos a partir de um contexto local. Tal identidade entre Espanha (Andaluzia) e os ciganos antecedeu e ultrapassou a Lorca, às fronteiras da Espanha, e se disseminou largamente, como demonstraram as referências de outros autores.
Nos dias atuais, o flamenco é tido como música nacional espanhola, ao menos para não-espanhóis; a imagem da mulher espanhola pintada em cartazes “para turista ver” é fortemente inspirada na cigana Carmen, de Bizet, linda e sedutora que dança e toca castanholas. O cigano, por outro lado, é representado sob o signo da virilidade, da coragem e da honra, associado também a um outro ícone nacional, o torero. Juntas, estas figuras revelam a essência de representação máscula do homem espanhol.
A análise de dois casos particulares tão diversos fornece a este estudo uma precaução importante diante de uma generalização ocidental. Cada um deles mostra como é possível, a partir de um mesmo conjunto de obras, empreender leituras diferentes segundo a perspectiva que se escolhe abordar. Sem contradizer as representações encontradas no âmbito vasto do Ocidente, tanto o contexto brasileiro como o espanhol realizam interpretações particulares, e cada um deles a seu modo. Embora em ambos casos o horizonte em questão seja a definição de uma identidade nacional, o cigano serve a interesses completamente distintos. No caso espanhol, busca-se nele o valor do próprio espanhol, pela virilidade do homem, a exuberância da mulher e a arte musical do grupo. No caso brasileiro, tudo ocorre ao contrário; não se reconhece nos ciganos uma qualidade positiva, por contraposição, são as vigarices e a sedução que fazem deles bons análogos do malandro e da mulata, estes sim, ícones nacionais dessa sociedade plural e permanentemente oscilante entre a ordem e a desordem. O cigano, como signo de alteridade, ao se deixar apropriar de formas tão diferentes, faz prova, nesses exemplos, de ambigüidade essencial.
Notas
1 Ver Ferrari (2002).
2 O Ocidente deve ser tomado aqui não como área geográfica ou como aglomerado de nações, mas como um conjunto de idéias, um discurso. A extensão refere-se, portanto, não a um lugar mas ao leque de representações.
3 Sobre os ciganos residentes no Rio de Janeiro, no início do século XIX, cogita-se que “quatrocentos ciganos formavam uma comunidade na periferia sul da cidade e outro grupo vivia dentro da cidade em torno da Rua dos Ciganos, Campo de Sant-’Anna e o mercado de escravos da cidade” (Donovan, 1992: 43 apud Teixeira, 1999).
4 Refere-se à portuguesa Maria, que o enganara com outro homem. “Saloio” contém essa dupla acepção, segundo dicionário Houaiss (2001): 1. que é dos arredores de Lisboa; 5. diz-se de ou indivíduo que revela falta de civilidade, de traquejo social ou de bom gosto; 6. indivíduo que procede com manha ou velhacaria.
5 O primeiro personagem cigano dessa história é, na verdade, uma mulher por quem se apaixona Leonardo. Só há uma referência: ela troca Leonardo por outro homem.
6 O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, instituição criada no final do século XV empreendeu uma radical perseguição a hereges e a mulheres consideradas bruxas. As ciganas foram alvo particularmente privilegiado, reforçando a associação estreita destas com a feitiçaria e um acesso privilegiado ao além.
7 A bibliografia sobre o malandro é extensa. Entre os principais autores que tratam dela, além de Antonio Candido e Lilia Schwarcz, destaca-se Roberto DaMatta, com o livro Carnavais, malandros e heróis [1978].
8 Cf., entre outros, Cortesão & Pinto, 1995.
9 Em Carmen, há uma passagem em que a personagem diz “[…] Allons, il y a remède a tout, quand on a pour bonne amie une flamande de Rome” (Merimée, [1845] 1960: 51), na qual o autor acrescenta uma nota de rodapé: “Flamenca de Roma. Gíria que designa as bohémiennes, Romanão quer dizer a cidade eterna, mas a nação dos Romi ou daspessoas casadas, nome dado aos bohémiens. Os primeiros ciganos vistos na Espanha vinham provavelmente dos Países Baixos, de onde veio o nome deFlamands” (id.:ibid., nota 35). Daí a origem do vocábulo flamenco.
10 O autor argumenta que as músicas ciganas em diferentes países têm mais elementos em comum do que aparentam e que os aspectos recorrentes são freqüentemente associados à música oriental.
11 Não se fará justiça à importância e complexidade da obra neste ensaio, pois será necessário reduzi-la a uns poucos aspectos diretamente relacionados a esta investigação. Para melhor apreciação da representação do cigano na obra de García Lorca sugiro a leitura integral do Romancero gitano, assim como do Poema del cante jondo.
12 O romancero é, na literatura espanhola, aquele que canta romances; esses, diferentemente da classifi cação em português, são “composições ao mesmo tempo íntimas e épicas, pessoais e objetivas, narrativas e cheias de diálogo e ação, escritas em octossílabos encadeados pela rima assonante nos versos pares” (Fernandez de los Ríos, 1986:1).
13 Retratados por Joseph Conrad (O duelo) e Stendhal (O vermelho e o negro) e também ressignificados pelos western americanos, por exemplo.
14 De uma maneira geral nesta obra, Lorca metaforiza a “ciganidade” pela cor verde. Um de seus versos mais famosos “verde que te quiero verde. / Verde viento. Verdes ramas.” deRomance sonámbulo, é exemplar. É curioso, entretanto, que um viajante do século XIX, George Borrow, tenha descrito a tez dos ciganos como “un bello color oliváceo” ([1841] 1932: 52), ou seja, verde oliva.
15 Em Andando Sevilha, João Cabral já sugerira essa aproximação: “E quando o toureiro é cigano? / Como é que toureava Cagancho // Toureiro e cigano, tinha a arte / de qualquer cigano no baile; […]” (Melo Neto, [1987-9] 1995, 667).
16 E, note-se, interpretados a partir de materiais diversos: a identidade espanhola via textos literários, a brasileira, usando a crítica literária, isto é, utilizando uma mediação.
BJS* VIVIANE
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